Este conto retrata o
ultimo capítulo desta história, não que isso signifique que os contos acabaram,
mas apenas que, sob uma perspectiva cronológica, a história do guardião se
encerra aqui.
Vejamos:
Nevava, era o período de se resguardar, de se recolher, era
a época de estar com a família e tratar de todos para que até os mais fracos
tivessem alguma chance de superar o tempo frio. Era sabido por todos que os
menores passariam por apuros, assim como aqueles que convalesciam de feridas
das batalhas, pena, não tiveram a sorte de morrer em batalha com espada em
punho, esquecidos pelas Valquírias ou apegados demais à vida para parar de
lutar por ela.
Mas este inverno era diferente, estavam todos tensos, sabiam
que, mais cedo ou mais tarde teriam suas terras invadidas, havia inimigos
vindos de terras sempre geladas, estes guerreiros não precisavam voltar para
casa neste período, pois seu lar seria ainda mais hostil que este ambiente
estranho, estavam em seu ambiente natural quando cercados de gelo, alguns entre
eles, possivelmente os mais bravos, se vestiam de branco como a neve, com a pele
de ursos brancos a cobrir seus corpos.
O guardião já os conhecia, havia lutado lado a lado com
alguns como eles, bem como havia cruzado espadas com outros tantos, sabia que a
neve não os impediria, sequer atrasaria. Mas as vezes eles mudavam de rumo,
encontravam um lugar para passar um tempo, buscavam apenas terras melhores que
as suas, ninguém ficaria parado vindo de onde vieram, terra infértil e fria,
mais parecia que os deuses haviam abandonado aquele lugar.
Numa manhã, os
ventos anunciaram a sua chegada, era hora de batalhar, não estavam prontos, não
podiam estar, ainda se recuperavam da ultima batalha e não foram avisados a
tempo de preparar uma reação adequada, ou mesmo uma fuga eficaz.
Faltava-lhes um líder, o ultimo acabara de morrer das
feridas da batalha que enfraqueceu toda a tribo, deixou apenas a irmã com
sabedoria e conhecimento o suficiente para liderar, mas mesmo esta se
encontrava completamente desestruturada pela morte de seu amor e a perda de seu
filho.
Mas o calor da batalha deu-lhe uma razão para continuar, era
preciso, apatia agora representaria a morte de seu povo, o fim do sonho da
velha, responsável pela ascensão do seu sangue e expansão por todo o mundo, e
assim, ela teve que continuar. Ordenou que fosse posto em prática aquilo que
todos sabiam ser o certo, ela seria responsável pela retirada dos pequenos,
estes garantiriam a continuidade da linhagem, os mais fortes dariam o tempo
necessário para a fuga.
O guardião também sofria pela perda do chefe e primo, aquele
que tanto o ensinou. Seu irmão de armas agonizou até o fim, os ferimentos de
batalha o levaram, mas lutou contra isso, não desejava o Valhalla, não agora,
jamais fora apegado a vida, nenhum guerreiro desta tribo era, todos lutavam
bravamente na esperança de continuar lutando eternamente junto aos deuses, mas
o líder precisava continuar, sabia da
batalha que viria e sabia da importância da sua ferocidade na batalha para dar
força e inspiração, era sempre “o tiro certeiro”.
A pequena, filha do seu amor, agora era uma adulta e ajudava
a anciã, praticamente liderava a tribo, enchendo o guardião de orgulho,
eventualmente sentia ciúmes da relação do guardião com sua nova esposa, aquela
moça quase de sua idade, mas relacionava-se bem com todos, o guardião esperava
que ela levasse os pequenos junto com a “chefe”.
Estavam todos lá, ou quase, todos os sobreviventes do ultimo
combate, ansiosos com o anúncio da tempestade que viria, todos conheciam o
plano, era a alternativa final, os mais fortes seriam rochas a impedir o avanço
do mar, ainda eram muito fortes, especialmente em casa, tinham a melhor razão
de todas para lutar, a sobrevivência da tribo, e assim, independente da fúria,
os invasores deveriam recuar, como as ondas voltam para o mar.
O guardião sabia sua função, não estava na linha de frente,
sequer na segunda defesa, estava aguardando, junto com os seus irmãos seriam a
ultima defesa, seguiria com disciplina a ordem de seu líder, de seu primo, este
lhe confiara a linha dos guardiões e ele não falharia.
Foram pegos de surpresa, os ventos não avisaram a tempo, mas
ainda assim resistiram, jamais havia lutado com tamanha fúria, sabia se tratar
da sua ultima batalha, mas precisava dar tempo para a fuga dos pequenos e das
mulheres, era necessário tempo para que fosse garantida a sobrevivência do seu
povo.
O guardião sentiu picadas de abelhas e ouviu o zunido de
vespas, mas isto não o fez parar, sequer reduziu seu ritmo, derrubou
guerreiros, um após outro, reconhecendo alguns de outras batalhas, quase todos,
guerreiros valorosos, que também lutavam pela sobrevivência.
Lembrou-se que seu amor viria buscar-lhe pessoalmente, sua
Valquíria, novamente se uniriam no fim da batalha, o orgulho tomou conta de seu
peito e sabendo que ela estaria ali observando, lutou para ela.
Felicitou-se ao saber que a sua pequena estaria em
segurança, o que também agradaria a Valquiria, sua mãe. Teria sua linhagem
garantida e seu sacrifício compensaria a falta que fez nos primeiros anos desta
pequena.
Sentiu-se desolado, era noite. Não notou o momento em que
escureceu, mas agora se sentia sozinho, mal se ouvia o barulho da batalha, eram
poucos os seus irmãos a lutar, mas não menos ferozes, notou que as picadas de
insetos eram na verdade flechas, muitas delas, não lembrava-se de ter visto
alguém lutando com tantas no próprio corpo, pensou em descansar, sentia frio e
sono, mas sabia que a cada minuto combatendo, aumentavam as chances de sucesso
na fuga de sua pequena, que sempre detestou ser chamada assim.
Recobrou forças e correu. Avistara os arqueiros e sabia que
de perto os massacraria, mesmo estes já pareciam cansados, questionavam a
sabedoria daquela invasão ao ver o preço a ser pago, não tinha forças para
sutilezas, já não podia ser tão preciso, por isso desculpou-se aos deuses por
não respeitar os corpos dos inimigos o os degolou, com selvageria jamais
experimentada. Aqueles que se assustaram com a cena fugiram, mas um, congelado
pelo temor, revelou-se pouco atrás daquela primeira linha de arcos, visto pelo
guardião imediatamente após a queda do corpo sem vida de um dos seus inimigos.
Mal acreditava na quantidade de arqueiros, detestava-os,
eram incômodos e desequilibravam a batalha, queria vê-los sofrer, dirigiu-se
àquele que o encarava tremendo, sentia o medo dele, o via tremer, mas o medo
não impediu que o arqueiro abrisse a mão direita, libertando a flecha em seu
arco já retesado, talvez tivesse largado a flecha sem querer, justamente por
medo do gigante cravado de flechas que se movia em sua direção.
O guardião urrava enquanto se movia, uma espada em cada mão,
“garra de coruja” e “beijo de aranha”, sentiu mais uma picada e num ultimo
esforço arremessou sua espada, a “garra da coruja” voou e alcançou seu alvo com
força e precisão mortais, cravando-se no peito do jovem arqueiro e o
arremessando no chão.
Enfim descansaria, segurou o “beijo da aranha” com força nas
duas mãos e se deixou cair, esperaria pela sua Valquiria armado, estava pronto
para o Valhalla e para o Ragnarok, mas pouco antes de ser levado avistou sua
Valquiria, não colhendo as almas, mas batalhando, com a mesma selvageria do
guardião, reconhecia aqueles movimentos, eram os seus próprios movimentos em um
corpo feminino e, em um lampejo, reconheceu sua filha.
Não podia ser, ela lhe prometera seguir com os pequenos para
garantir a segurança de todos, ficou angustiado e em dúvida, morreu sem saber
ao certo, em seus olhos não haviam mais a paz de quem segue para o Valhalla,
mas sim o desespero de quem não sabe ao certo o destino
de sua cria.
Mas esta história não
nos cabe contar....