quarta-feira, 30 de maio de 2012

CONTOS DE UM GUARDIÃO – MEDO DE SENTIR


Nenhuma dor que senti foi mais intensa, nenhum ferimento mais profundo e jamais o peso da solidão foi tão grande. Neste dia ouvi uma resposta inesperada daquela de quem cuidei com tamanho afinco.


Por um tempo cuidei daquela pequena, de sorriso largo, sempre metida em encrenca, que dormia com cara de sofrimento, que sabia ocupar perfeitamente o espaço de minhas costelas, que muitas vezes arrancou sangue de minhas costas com suas unhas, num movimento intenso e lento, onde a  satisfação era estampada com um sorriso malicioso em seu rosto, de quem sempre fez o que quis e por muito tempo me quis.

Era seu homem e seu protetor, encaixávamos perfeitamente, apesar da estupida diferença de tamanho, aquela pequena sedenta de mim, eu a quis como a nenhuma outra, não que fosse meu maior amor, mas jamais alguém se encaixou tão perfeitamente em mim, quando nos uníamos ela era feroz e ativa, fazia como queria e gostava quando eu a dominava, mostrando que mesmo uma égua arisca podia ser montada, quando ela ria alto ao ter os cabelos agarrados com força, olhar desafiador e matreiro, movimentando-se como uma cobra, mordendo como uma cadela e arranhando-me como uma tigresa. 

Mas encaixava-se também no dia a dia, ria do que falava, concordava, e mesmo quando discordava, encaixamos em nossas discussões, sempre divertindo-nos, conversávamos horas a fio, muitas vezes, suados e cansados, arranhados, machucados, deitávamos nus na relva e conversávamos, ríamos da ferocidade daquele momento, assim que ele acabava, eu ameaçava quebrá-la algum dia e ela me desafiava a fazê-lo, mas além de forte ela gostava de toda minha força e jamais quebraria, não daquela forma.

Mas um dia o perigo passou, estava chegando meu momento de partir, começamos a nos preparar para aquilo, as noites ficaram mais calmas, os dias um tanto lúgubres, a cada vez que nos deitávamos, era como uma despedida, com demonstrações de carinho e afeto não costumeiras, demonstrando através de atos que sentiríamos falta um do outro, não éramos mais como dois animais selvagens, mas sim dois seres dóceis, afáveis. 

No dia em que partiria, ela chorou, esperneou, xingou, amaldiçoou, me arranhou, novamente até sangrar, mas desta vez sem prazer, apenas sofrimento e pela primeira vez em anos eu cedi, como nenhuma outra pequena havia me feito ceder, aquela tinha me vencido, era impossível não ceder àquela coisa miúda chorando com a cabeça em meu peito, a prometi ficar, disse que permaneceria com ela, ao menos por mais um tempo, o que foi um erro.

Fiquei mais tempo ao seu lado, mais do que deveria, quase me estabeleci, insto foi contra minha natureza, espirito livre, apenas me estabeleceria quando encontrasse meu lugar, ou no caso daqueles que me perseguiam um dia me enterrassem em algum lugar, o que eventualmente aconteceria, sofri por um tempo, estar estabelecido era como estar enjaulado, o sofrimento era aplacado pela companhia daquela pequena, mas já não era o suficiente, precisava andar, vagar, em outro lugar alguém precisava de mim e eu precisava partir, então decidi que era tempo e cometi o segundo erro, aquele que me fez sangrar como nunca.

Numa manhã de sol pálido me deitei com ela na grama ainda molhada de orvalho, encoberto por brumas a possuí, como nunca antes, com vontade, força e carinho, mostrei-a tudo aquilo que sentia através de meu corpo, ela entendeu, soube que eu iria embora e chorou, ao fitar meus olhos, já deitada ao meu lado, segundos após o clímax ela chorou, não soluçou ou fez escândalos, apenas aquele choro contido de quem está resignado, então saíram da minha boca as palavras pelas quais me arrependi:

"vem comigo, pequena, vem viver e morrer comigo!"

Neste momento aquela coisa pequena e branca, muito branca, simplesmente cresceu, um olhar intimidador surgiu e ela falou que eu, dentre todos, eu deveria saber que ela jamais deixaria suas funções, seu povo, sua família e eu me tornei pequeno, impotente diante daquela deusa que surgiu em minha frente, desta vez ela sequer retrucou sobre minha partida, sem despedidas saí derrotado sangrando, sabia que a reencontraria, se não nesta vida, em outra, mas jamais retornei e aprendi a ter medo de sentir, pois o sentimento me tirou do meu caminho por tempo demais.

terça-feira, 22 de maio de 2012

CONTOS DE UM GUARDIÃO - ENCONTRO


Ela lhe viu lutar e gostou, da sua ferocidade, do sorriso em seus lábios ao enfrentar a morte, a sua ousadia lhe arrepiou a nuca, sua virilidade e força deixaram-na de pernas tremulas e seu sexo estava pronto, numa enxurrada de  temor e excitação.
  
 Não suportava esperar o momento em que poderia tratar seus ferimentos e cavalgar em seu corpo ainda febril, fitar sua expressão de prazer e dor, pois ainda naquela noite, ele seria seu homem, seu guerreiro, seu Deus, e ela seria sua mulher, sua sacerdotisa e sua Deusa.
...

Entre sangue e suor ela deitou sobre ele, num ultimo suspiro de gozo, sabia que estaria grávida, poderiam ter muitos filhos juntos, mas teriam apenas um, seus caminhos estavam determinados, cruzavam-se, mas não se alinhavam. Aquela criança seria o vinculo eterno, a lembrança do dia em que ele sobreviveu para se entregar a ela, a perfeita réplica de como eles foram um, em mente e corpo, tanto no campo de batalha, onde suas orações o inspiraram e deram força, quanto na cama, quando seu corpo o aqueceu e curou.
...
Levou tempo para que ele estivesse pronto para partir, água pura, ervas, orações e o calor do seu corpo o ajudaram a levantar. Ele lembrava daquela primeira noite, e de todas as outras, em que ela deitou-se com ele e aplacou sua febre com o calor de seu sexo, de como as feridas se abriram com o vigor desta comunhão.

O que apenas ela lembrava eram as noites de alucinações, com choro baixo, com medo da solidão e do escuro que apenas se aplacavam com o cuidado e calor de seu corpo, dos dias em que aparentemente ele morreu, aplicando técnicas que aprendeu em suas jornadas para se manter escondido, ainda que dormindo.

Mas naquele dia ele estava de pé, parecia que a luta jamais tinha ocorrido, exceto pelas feridas que ainda não estavam completamente cicatrizadas, o sorriso largo de quem não sentia mais dor alguma, como se a morte não fosse algo a ser temido, mascara que aprendeu a usar em suas andanças. E naquela noite festejaram, beberam, comeram e dançaram, como dançaram! Novamente eram um, olhares e sorrisos os uniam de tal forma que mesmo aquela dança não coreografada parecia natural, como se fossem os parceiros mais antigos, e talvez o fossem!


No fim da noite se uniram uma vez mais, e foi a primeira que sua condição física lhe permitiu guiar, e ele o fez com vontade, até quase desmaiar, sabendo que aquela provavelmente seria a ultima vez que seus corpos se uniriam, ao menos nesta vida.

Ao acordar ela sequer precisou virar-se para saber que estava só, não sentia mais aquele calor e entendia a natureza de seus caminhos, não houveram despedidas nem um “eu te amo”, não foi necessário, suas almas falaram tudo que havia para se falar e estariam conectadas, marcadas de tal forma que por muitas vidas ainda iriam se encontrar e desencontrar, numa busca incessante por aquele pedaço que eternamente lhe faltaria.